FAZENDO ARQUEOLOGIA BRASIL AFORA

Pedro Ignácio Schmitz

Ao escrever estas páginas estou completando 43 anos de docência universitária, vivida paralelamente na UFRGS (1958-1995) e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Meu relato se refere a esta última.

Comecei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Leopoldo em 1963 e fui seu último Diretor. Na Unisinos, depois de curtos períodos dedicados a tarefas administrativas, minhas atividades se concentraram na docência e na pesquisa, em Antropologia Cultural e Arqueologia Pré-histórica.

Antes de falar de minha inserção na universidade preciso dizer algo sobre o começo da pesquisa na mesma. Quando a universidade foi criada, em 1969, havia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Leopoldo dois setores que desenvolviam Ciência de forma sistemática, embora incipiente: a História Natural e o Instituto Anchietano de Pesquisas. Logo se juntou o CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa), que seguiu caminho próprio e foge de minhas considerações.

Num período em que a universidade mal conseguia pagar aos professores as horas passadas em sala de aula, só faziam pesquisa os docentes jesuítas, apoiados pelo CNPq, que proporcionava bolsas, juntamente com verbas para compra de aparelhos e execução de projetos. Assim cresceu, com amplo reconhecimento, o núcleo da História Natural, que contava com alguns doutores formados na Europa e tinha outros em formação no País e no Exterior. E o Instituto Anchietano de Pesquisas, uma associação de pesquisadores jesuítas, fundada em 1956, no velho Anchieta, logo transferido para os prédios em que funcionavam as Faculdades antecessoras da Unisinos. Apesar de juridicamente independente, o Instituto esteve, desde a fundação, estreitamente ligado à universidade, porque a maior parte dos pesquisadores, como eu, éramos seus associados e, ao mesmo tempo, professores. Fui antes associado que professor, pois escrevi a ata de nascimento do Instituto e continuei, ao longo de toda a sua história, alternadamente, seu Secretário ou Diretor. Os laços entre as duas instituições se estreitaram, através do tempo e o Instituto passou a ser, de fato, uma parte da UNISINOS; isso tem sentido, porque são da mesma mantenedora e têm idênticos objetivos.

O Instituto se mantinha, como a História Natural, não por entradas provenientes de seus trabalhos, ou por recursos fornecidos pelas Faculdades ou a Universidade, mas por causa de sua ligação com o CNPq, inicialmente também com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). As verbas e bolsas cobriam as atividades mínimas de pesquisa, mas estratégias criativas eram necessárias para conseguir espaço, aparelhagem e alguns recursos complementares.

stando grande parte de seus membros diretamente locados em departamentos da Unisinos, para não haver duplicações, as atividades do Instituto foram se reduzindo, aos poucos, a três setores: a História, na qual se destacavam os padres Arnaldo Bruxel, Artur Rabuske e Milton Valente; a Botânica, onde estavam ativos Aloísio Sehnem e depois Josafá Carlos de Siqueira; a Arqueologia e Antropologia, com Pedro Ignácio Schmitz, João Alfredo Rohr, Adalberto Holanda Pereira e Itala Irene Basile Becker.

Além da pesquisa de seus membros ativos o Instituto também foi assumindo o papel de garantir a continuidade dos programas científicos de seus associados falecidos, cuidando que as pesquisas fossem adequadamente continuadas ou concluídas e mantendo vivos e acessíveis os acervos por eles criados. O Herbário Anchieta, com 120.000 espécimes, criado por João Ev. Rick, Balduíno Rambo e Aloísio Sehnem, é o acervo mais em evidência, mas existem os do Pe. Arnaldo Bruxel, do Pe. Milton Valente e do Pe. João Alfredo Rohr, cada um importante na sua categoria.

Por causa de sua incorporação cada vez maior na Universidade, o Instituto conseguiu manter os acervos, as bibliotecas, a pesquisa, as publicações e atividades de extensão, estas ligadas ao museu arqueológico e à capela-museu, onde são atendidas, no primeiro semestre letivo de cada ano, de 50 a 60 turmas de alunos do ensino fundamental e médio.

As publicações resultantes das pesquisas tampouco chegaram a parar, mesmo nas piores crises. A revista Pesquisas, com setores independentes em Antropologia (incluindo a Arqueologia, com 56 números publicados), a História (30 números) e a Botânica (50 números) tem, em cada série, diversas indexações internacionais, atestando sua credibilidade e continuidade. Além de Pesquisas existe a série chamada "Arqueologia do Rio Grande do Sul, Brasil. Documentos" (8 volumes publicados) e "Publicações Avulsas" (12 volumes). Essas publicações fizeram do Instituto uma das referências para a pesquisa da Universidade nesses três setores.

Seria extenso e monótono fazer um balanço da atividade científica da instituição. Restrinjo-me a dizer, rapidamente, o que se faz em Antropologia/Arqueologia, o setor que coordeno desde o começo, no Instituto e na Universidade. O setor tem como objetivo criar conhecimento válido sobre as populações indígenas brasileiras, doze mil anos maior que a visão ligada à comemoração dos 500 anos da descoberta portuguesa. Quando iniciamos a pesquisa havia pouquíssima informação sobre o período anterior a 1500 e por isso, em todas as regiões em que os programas foram implantados, o terreno era virgem e tudo precisava ser criado a partir do nada.

O primeiro programa dessa pesquisa, naturalmente, teria de cobrir o Estado do Rio Grande do Sul (1965 a 1972). Ele se destinava a reconhecer as diversas culturas indígenas, sua origem, idade, desenvolvimento, forma de apresentação ao tempo da conquista e história posterior à chegada do europeu. O programa foi desenvolvido com grande entusiasmo e juntou, na espontaneidade e sem remuneração, pesquisadores de instituições universitárias de Porto Alegre, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Caxias do Sul, Ijui e Rio Grande; munidos de alguns recursos do IPHAN e logo de auxílios e bolsas do CNPq, esses voluntários pesquisaram os diversos ambientes naturais do estado: o Planalto, a Depressão Central, o Litoral Norte, o Sudeste e a Campanha. Reunidos os dados configurou-se uma história de 600 gerações humanas que deixaram seu testemunho em casas subterrâneas, em sambaquis e cerritos, em aldeias com casas de palha e acampamentos ou cemitérios em grutas e cavernas. As versões coloniais desses povoadores passaram a ser conhecidas como Guianá ou Kaingáng, Guarani, Charrua e Minuano. A novidade dos achados era imensa e repercutia, a nível científico, em congressos regionais, nacionais e platinos, artigos e livros; a nível popular era freqüente que no jornal da RBS os achados mais recentes preenchessem as duas páginas centrais.

Em 1972 deu-se a expansão para outros estados brasileiros. O primeiro grande programa foi executado com a Universidade Católica de Goiás (1972-1985 e 1999), cobrindo todo o estado de Goiás, parte do Tocantins e da Bahía. Os resultados foram múltiplos: o surgimento, na Universidade conveniada, de um forte instituto de Arqueologia e Antropologia, uma história de 11.000 anos para a população indígena do Planalto Central, intensa repercussão da arqueologia brasileira no exterior e o título de Doutor Honoris causa para o coordenador da pesquisa. A população do Estado acompanhava os resultados através do maior jornal de Goiânia (O Popular), que, a cada três meses, relatava nas páginas centrais, as novidades de nosso trabalho. O jornal, junto com as rádios locais, eram nossos principais meios de socialização dos resultados. Mas também era a estratégia de chegarmos, sem problemas, a novas áreas. Para isso publicávamos uma reportagem no Estadão ou na Folha de São Paulo sobre o nosso trabalho, com a indicação de que, proximamente, estaríamos na área. Quando chegávamos na padaria, ou no açougue, lá estava, colado na porta, o recorte. E a pergunta imediata, quando nos viam, sujos e estranhos, se éramos nós. A penetração desses jornais é inacreditável e abria todos os caminhos até o fim do mundo.

Goiás tornou-se um centro de referência e foi lá, por ocasião de um simpósio nacional, no qual produzimos uma nova síntese da pré-história brasileira, em 1980, que se fundou a Sociedade de Arqueologia Brasileira, de que fui eleito primeiro Presidente. Através de Goiás a Arqueologia da Unisinos foi projetada no âmbito internacional.

Com o término desse programa, em 1985, surgiu outro, amplo como o anterior, no Estado do Mato Grosso do Sul, que dura até hoje. Parceira no programa é a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Os primeiros cinco anos foram dedicados ao Planalto e os oito anos seguintes ao Pantanal, nos municípios de Corumbá e Ladário. Para dizer de sua importância basta indicar que esta é a primeira pesquisa arqueológica sistemática no Pantanal. Neste momento já existe um esboço de 8.200 anos de sua pré-história e o relato completo da vida de seis grupos indígenas coloniais e de duas missões dos padres capuchinhos. Em termos universitários isto representa oito dissertações de mestrado, um volume de Pesquisas e numerosos artigos e comunicações.

Em 1984 faleceu o maior escavador do Brasil, o arqueólogo Pe. João Alfredo Rohr, deixando a conclusão de sua obra e o Museu do Homem do Sambaqui aos cuidados do Instituto Anchietano de Pesquisas. Com isso, em 1985, começou novo programa: O Povoamento do Litoral Meridional do Brasil, já com cinco volumes publicados, pequisas em andamento e projeto futuros. Também o museu, no Colégio Catarinense, foi todo reestruturado, o acervo colocado à disposição dos pesquisadores e a exposição mais bonita e bem atendida que em qualquer outro momento.

O que estou contando não é obra de uma pessoa, mas de uma equipe interdisciplinar permanente, composta de arqueólogos, historiadores, geólogos, zoólogos, biólogos e botânicos, do quadro da Universidade ou agregados como bolsistas do CNPq, da FAPERGS, da Unisinos e do Instituto, mais as pessoas provenientes de convênios com outras instituições universitárias.

Ninguém na equipe sonha com abundância de recursos financeiros. Pelo contrário, usando a maior parcimônia do mundo, a pesquisa é continuada porque é uma tarefa universitária e tem um forte sentido social. Para isso o Instituto goza de uma invejável instalação e toda a máquina universitária dando suporte para a rotina diária, pequenas saídas de campo e as publicações, situação que causa inveja a muitos companheiros de outros institutos brasileiros.

Concrescidos, o Instituto e a Universidade tentam cumprir sua tarefa que é criar e difundir cultura, dando aos jovens a possibilidade de se tornarem cidadãos de um grande país.

Por isso a vida na universidade é uma experiência que vale a pena e recompensa qualquer esforço. Estruturar novos caminhos do conhecimento, partilhar com os jovens a busca interminável do crescimento e da participação, conviver com o povo simples e indefeso nas saídas de campo, são estímulos permanentes, que deixam pouco lugar para monotonia e sossego. Quando isto é feito não como simples ocupação ou emprego, mas como missão de cidadania e serviço, a vida se torna plena e não precisa outras distrações