Segundo cenário: o Pantanal do alto rio Paraguai

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A paisagem compõe-se dos seguintes elementos: um planalto residual, cujos pontos mais altos atingem mil metros; a encosta do mesmo, coberta por densas matas; o rio Paraguai que circunda os terrenos altos pelo norte e pelo leste, deixando no percurso numerosos canais e grandes lagoas, e a planície aluvial que alaga durante meses depois da intensificação das chuvas anuais (Schmitz e outros, 1998).

Neste ambiente há incontáveis recursos: peixes de todos os tamanhos, grandes jacarés e serpentes, milhares de moluscos aquáticos, cervídeos, porcos do mato, capivaras, aves que formam extensos ninhais, grandes extensões de arroz nativo, um verdadeiro paraíso, ligado à água. Quando as águas estão baixas, durante o período mais frio do ano, a oferta maior está no rio, nas lagoas e na baixa encosta. Quando as águas invadem os campos, no período mais quente do ano, há também grande oferta de bens na planície alagada. A população que deseja usufruir todos esses bens precisa movimentar-se pela água e manter um sistema de assentamento flexível, combinando sítios de maior estabilidade em terrenos não atingidos pela enchente, onde os recursos são anuais, com acampamentos avançados nos campos alagados, onde os recursos são estacionais. Esta combinação possibilitou o desenvolvimento de sociedades baseadas na pesca, na coleta e na caça. Embora estabelecidas na planície, elas estão ancoradas no planalto. Por isso, os sítios vão diminuindo, até desaparecer, na medida em que nos afastamos dos terrenos altos, do rio e das lagoas.

O Pantanal não existiu sempre na feição que tem hoje, mas se formou aos poucos, e aos poucos também foi sendo povoado. Como ele é muito diferente do planalto, foi necessário que o Homem fizesse a nova instalação de acordo com essas diferentes condições.

O primeiro assentamento, para exploração dos variados recursos oferecidos, está localizado num terraço estrutural calcário, que se eleva oito a dez metros sobre o leito do rio Paraguai, no terreno de uma escola, em Ladário, cidade vizinha de Corumbá. A instalação parece estratégica para alcançar os diversos recursos: na frente do assentamento está o rio, largo, rápido, de fácil acesso; na margem oposta do mesmo existe grande planície, que anualmente alaga por meses, e dá origem a incontáveis moluscos e grandes extensões de arroz nativo; na retaguarda do assentamento, se adensa a mata da encosta do planalto residual.

O assentamento apresenta-se como um concheiro estratificado, com 150 m de diâmetro e 1 m de espessura, cujas seis datas o colocam entre 8.000 e 8.300 anos antes do Presente.

Os restos orgânicos, testemunhos de alimentação, indicam apropriação generalizada dos recursos locais, entre os quais diversas espécies de moluscos do gênero Ampullaria, grandes répteis como o jacaré, mamíferos variados e, especialmente, peixes de tamanho médio e pequeno.

O conjunto dos artefatos líticos, produzidos em calcário e outras matérias primas locais não demonstra, à primeira vista, nenhuma semelhança com as indústrias do planalto: trata-se de talhadores, blocos com pequenas depressões (“quebra-cocos”) ou com superfícies rebaixadas (“alisadores”), mãos, numerosas pequenas bolas lascadas, picoteadas ou alisadas, lâminas e seixos com faces ou gumes polidos, além dos costumeiros núcleos, lascas e percutores, uma típica produção local.

Em osso e concha existem pontas, espátulas, ganchos que parecem anzóis primitivos.

Apesar de se terem feito diversos cortes estratigráficos e também uma escavação de 9 m2, seria prematuro querer definir o caráter do sítio, se relativamente duradouro ou originado por sucessivas re-ocupações.

Em posições semelhantes, ao longo do Maciço do Urucum, ou de outros maciços parecidos que cercam o rio Paraguai pelo oeste, provavelmente existem mais sítios da mesma ou de época parecida. Eurico Th. Miller (com. pes., 2001) encontrou um concheiro com a mesma idade, nos alagados do rio Guaporé, em Rondônia, o que é indício de que já existe uma experiência mais ampla de exploração dos alagados do oeste brasileiro, fronteira da Bolívia.

Como no Planalto Central, também aqui temos um intervalo de 3.000 anos até alcançarmos o próximo assentamento. Ao redor de 5.000 anos A.P. nos damos conta de nova ocupação, que se observa tanto nos alagados do rio Paraguai, como nos do rio Guaporé (Miller, com. pes., 2001).

Em Corumbá, estes novos sítios pré-cerâmicos só foram descobertos ao escavar assentamentos com cerâmica, por debaixo dos quais eles se encontram. Neles, os artefatos líticos estão praticamente ausentes. O que identifica essas camadas como ocupações humanas são os restos de alimentos e estreitas pontas feitas em osso. Estes assentamentos não se localizam na beira do rio, como o primeiro, mas na borda de lagoas, onde exploram recursos semelhantes aos do sítio pioneiro. Até agora são conhecidos 5 ou 6 destes sítios sem cerâmica. Para conhecer a extensão dessa ocupação serão necessárias mais intervenções em assentamentos considerados cerâmicos.

Ao redor de 2.800 anos A.P. aparece nos sítios, já claramente constituída, uma cerâmica típica, denominada tradição Pantanal. Ela é anterior às cerâmicas do planalto e não apresenta nenhuma semelhança com elas. Utilitária, de pequeno tamanho, com alta porcentagem de Corrugados Simples e presença de Corda Impressa, ela estará logo presente não só no Pantanal do Alto Paraguai, mas também no Chaco. Os sítios com cerâmica são muito numerosos e aparecem sob a forma de assentamentos grandes e densos, considerados centrais, na borda de lagoas junto ao planalto residual e em sítios menores, pouco densos, complementares, nos campos que alagam, tanto na proximidade das lagoas, como em terrenos mais longínquos, drenados pelos afluentes e canais do rio Paraguai.

Os sítios centrais caracterizam-se por uma quantidade grande de cerâmica, muito fragmentada pelo pisoteio, por abundantes contas de colar e por numerosos sepultamentos, que podem ser tanto primários, com o corpo estendido ou flexionado, como secundários, estes últimos geralmente mútiplos, podendo um pacote deles reunir até 8 indivíduos de diversas idades, colocados num mesmo fardo. Pode-se supor que os sepultamentos primários correspondam aos indivíduos que morreram junto ao assentamento central ou na proximidade do mesmo; os secundários, especialmente quando formam pacotes com mais indivíduos, corresponderiam aos que são trazidos de outros assentamentos.

Nos sítios complementares, na planície inundada, há muito pouca cerâmica, poucas contas de colar e os sepultamentos também são escassos, alguns primários, de indivíduos imaturos, outros, desfeitos, de indivíduos adultos, parte de cujos ossos teriam sido carregados para um sítio central.

Comparando os elementos cerâmicos dos assentamentos e as tendências estratigráficas representadas por estes, cremos poder mostrar o espaço dentro do qual se moveram os moradores de um assentamento central para fins de abastecimento em tempo de enchente e a partir de onde trariam para o cemitério central os falecidos nessas incursões. Dois assentamentos, um no lado norte da lagoa de Jacadigo, outro no lado sul, embora provavelmente contemporâneos, mostram tendências cerâmicas irreconciliáveis, sugerindo que se trata de famílias, ou bandos do mesmo grupo, suficientemente independentes para desenvolverem tendências opostas na decoração de seu vasilhame.

Como na região de Corumbá só temos sítios cerâmicos datados entre 2.800 e 1.200 anos A.P., não nos sentimos justificados a usar uma analogia etnográfica direta com os grupos canoeiros que, no período colonial, dominavam o Pantanal, como os Paiaguá, donos do rio Paraguai (Magalhães, 1999) e os Guató, do lago de Xaraiés (Oliveira, 1995). A montante do Paraguai, tanto no Mato Grosso do Sul, como no Mato Grosso, existem datas mais novas para uma cerâmica menos decorada, da mesma tradição (Peixoto, 2003, Migliacio, 2000, Oliveira, 2002), com a qual uma analogia etnográfica direta talvez não seja descabida.

Os sítios estratificados do Pantanal vêm acompanhados por grandes extensões de petroglifos, gravados em lajedos planos de óxido de ferro, no sopé do planalto residual. Só na região de Corumbá pudemos documentar 1.300 metros quadrados de figuras grandes, sob a forma de círculos, ou círculos concêntricos, com ou sem raios internos, pisadas semelhantes às humanas, mas também de felinos, e extensos sulcos, que incorporam ou fazem conexão entre as figuras. Essas gravuras não existem somente em Corumbá, mas também em outros lugares do Pantanal em que se registram assentamentos cerâmicos parecidos; e se estendem ao longo do rio Tocantins, alcançando o Amazonas (Girelli, 1994).

Do sistema de assentamento do Pantanal se conhecem, pois, ao menos esses três elementos: grandes assentamentos centrais em lugares em que há recursos variados, abundantes durante todo o ano; eles nunca seriam completamente abandonados, mantendo-se ativos durante séculos; sítios complementares, em que os recursos são abundantes apenas durante a enchente, obrigando os ocupantes a se dirigirem a um sítio central tão logo as águas baixem; e os petroglifos, que estão próximos aos assentamentos centrais, e podem ser considerados seus principais sítios rituais.

Em tempos históricos temos no mesmo espaço, além dos canoeiros Paiaguá, da família lingüística Guaicuru e dos igualmente canoeiros Guató, da família lingüística Macro-Jê, os cavaleiros Guaicuru, que vêm do Chaco trazendo seus rebanhos de cavalos e se estabilizam no território brasileiro sob o nome de Kadiwéus (Herberts, 1998); os Terena, da família lingüística Aruaque, originários da Amazônia, que peregrinaram pelo Chaco antes de se fixarem no lado brasileiro do Pantanal (Mussi, 1999). Temos também os Guaranis de que falaremos no próximo cenário.

Área Arqueológica de Corumbá.

répteis

aves

Primatas

Caramujos

Cidades de Corumbá e Ladário

Margem do Rio Paraguai em Ladário

Estratigrafia do Sítio MS-CP-22

Sítio MS-CP-22

Ilha do Jacadigo

Morraria de Santa Cruz

Margem da Baia do Jacadigo

Ilha do Jacadigo

Cerâmica aflorando na Superfície

Sítios na Região do Rio Abobral

Sítio na Região do Rio Abobral - Fazenda Sta. Helena

Sítio Arqueológico na Região do Rio Negro.

Sítio Arqueológico na Fazenda Bodoquena

Escavação de um Aterro, Fazenda Bodoquena

Escavação no Rio Verde

Petroglifos na Fazenda Figueirinha

Petroglifos na Fazenda Figueirinha


Abertura Introdução Iº Cenário IIº Cenário IIIº Cenário Conclusão
Texto da Conferência em PDF.